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Vampiras lésbicas e representação LGBTQIA+ no cinema

Gaia Jutz





O vampiro surge na crença popular e se estabelece na ficção, especialmente no terror. Retratado como uma figura monstruosa que perdeu a sua humanidade, o vampiro pode representar muitas coisas, e sua associação com uma forma de sexualidade anormal e perigosa tem origem muito tempo atrás, com o romance “Carmilla” (1872) do escritor irlandês Sheridan Le Fanu e a figura misteriosa de Erzsébet Báthori, a condessa sangrenta da Hungria do século XVII.


Apesar do sucesso de Drácula de Bram Stoker, a obra publicada 26 anos depois de Carmilla foi muito influenciada por ela. O romance de Le Fanu foi ofuscado por retratar uma relação homoafetiva em uma época de forte repressão sexual, mas isso não impediu que Carmilla deixasse um grande legado no audiovisual, encarando censuras puritanas e chegando a ser um mote comum em filmes de sexploitation.


Blood and Roses (1960) / Reprodução: Paramount Pictures
Blood and Roses (1960) / Reprodução: Paramount Pictures

No cinema, a primeira adaptação de Carmilla surge sem o subtexto homoafetivo, no filme “Vampyr” de 1932. Sob a pressão de um código de normas morais que censurava conteúdos LGBTQIA+, nudez e violência, muitos filmes vampirescos e, especialmente, adaptações de Carmilla, tiveram suas histórias repaginadas para não desagradar o público conservador. 


A década de 1930 é importante para entender o contexto em que surgem censuras morais no cinema estadunidense que impactaram a forma como as representações LGBTQIA+ foram se moldando. O Código de Produção de Cinema, que aplicou censuras aos filmes hollywoodianos, perdurou de 1930-1968 por meio da Motion Picture Association (MPA), uma entidade estadunidense que representa os maiores estúdios de cinema de Hollywood.


Isso acontece na época da crise econômica de 1929 nos EUA, quando o estilo de vida americano estava desmoralizado e a indústria cultural cumpre o papel ideológico de dar uma resposta para a realidade em que as promessas de sucesso econômico do capitalismo estadunidense não se cumpriam e havia um pessimismo geral com o desemprego e a miséria. 


Nesse sentido, Hollywood busca reconstruir uma imagem positiva do sonho americano e apontar os culpados pelos problemas da sociedade, acusando grupos marginalizados e as representações da violência no cinema de corromper a moral que sustentava o bom funcionamento da sociedade.


Mesmo diante da recessão econômica, o cinema era muito frequentado na grande depressão, e os filmes tinham um grande poder de influência ideológica. O Código de Produção de Cinema surge para regular quais temas eram apropriados para o cinema e, entre os parâmetros, estava a censura da “perversão sexual”, um termo que se referia a cenas sexuais e tudo aquilo que é desviante do padrão heterossexual e de uma moral puritana. Com essa censura, tornou-se comum a vilanização de personagens LGBTQIA+ enquanto representação negativa.


E onde entram as vampiras lésbicas nessa história?


Dracula's Daughter (1936) / Reprodução: Universal Pictures
Dracula's Daughter (1936) / Reprodução: Universal Pictures

Elas são também monstros, aberrações, vilãs. O desejo pelo sangue é traduzido como um desejo pelo pecado. No clássico “Dracula’s Daughter” (1936) vemos uma vampira melancólica e atormentada por seu vampirismo, buscando uma cura médica, que funciona como uma alusão à terapia de conversão. 


Apesar das censuras da época, o filme tem um subtexto lésbico facilmente identificável, sendo o lesbianismo a doença que é a raíz da sua monstruosidade. No filme, a personagem não é uma participante ativa em seu lesbianismo, ela é vítima dele (ERWIN, 2015). 


Ela é monstruosa porque vai contra a norma heterossexual, e os atos de alimentar-se de sangue, não ter uma vida social, usar hipnose e outros elementos sobrenaturais funcionam para representar anormalidade, marginalidade, compulsão sexual e desejo predatório. A vampira é uma assassina que atua nas sombras e é preciso tomar cuidado para que ela não te seduza para consumir o seu sangue. Um pôster de propaganda do filme de 1936 alertava: “Protejam as mulheres da filha do Drácula!” (Save the women of London from Dracula’s Daughter!)


Elas são monstros, mas também são mulheres, e isso vai favorecer uma fantasia sexual masculina, então a vampira lésbica vai se transformando ao longo dos anos e, na década de 1960, há uma erupção do desejo sexual reprimido (BENSHOFF, 1997) e elas são frequentemente retratadas com o arquétipo da femme fatale que vai roubar a sua esposa, com cenas favorecendo muito o male-gazing.


Nessa época, a censura se torna mais branda e é possível usar recursos como nudez e conteúdo homoerótico, e vemos uma adaptação de Carmilla bem diferente das primeiras em “The Vampire Lovers” (1970), onde a câmera favorece uma imagem para agradar a audiência masculina: a vampira se torna menos assustadora e mais sensual. Essa lógica envolveu muitos filmes nessa época, especialmente no exploitation.


The Vampire Lovers (1970) / Reprodução: Hammer Film Productions
The Vampire Lovers (1970) / Reprodução: Hammer Film Productions

Em Daughters of Darkness (1973), um favorito pessoal, a vampira não é monstruosa e nem pornográfica. No filme, um casal chega a um hotel para passar a lua-de-mel e se encontra com a Condessa Bathory. O homem é retratado de forma a não despertar simpatia da audiência, sendo violento com a sua esposa enquanto compensação por ser um homossexual enrustido, e a vampira é sofisticada, confiante, sua imagem é íntegra e exala poder.


Por fim, vemos que a jornada da vampira lésbica no cinema passa por revisões temáticas. O seu mito foi usado para expressar o medo da autonomia feminina e o desejo dos homens, e Daughters of Darkness apresenta uma inversão de valores, onde a heterossexualidade é anormal e violenta, e o lesbianismo é atraente. Apesar do final dramático, há a prevalência do poder da vampira. O lesbianismo é passado adiante, em uma mensagem que mostra sua imortalidade, ao contrário do que vimos nos filmes anteriores onde a atração homossexual é retratada como uma doença. Zimmerman (1981) afirma:


“A rainha da beleza de rosto rígido, que vimos como noiva inocente, masoquista passiva e vítima fascinada, é agora a poderosa e imortal vampira lésbica. Qualquer mulher, isso sugere, pode ter a sorte de ser lésbica” (tradução livre do original em inglês).

Daughters of Darkness (1973) / Reprodução: Gemini Pictures International film
Daughters of Darkness (1973) / Reprodução: Gemini Pictures International film

Esse é um pouco do mundo vampiresco LGBTQIA+, mas ele é muito maior do que eu posso apresentar brevemente. Vamos expandir essa lista: qual é sua representação preferida de vampiro/a LGBTQIA+? 


Referências

BENSHOFF, Harry M. Monsters in the Closet: Homosexuality and the Horror Film. Inside Popular Film. Manchester University Press, 1997.

CIEGHORN, Sophie. Film: The Hollywood Production Code of 1930 and LGBT Characters, 2017.

ERWIN, Elizabeth. How Horror Thwarted ‘The Code’, The Gay & Lesbian Review, 2015.

OLIVEIRA, Edicléia da Silva. O cinema como um subterfúgio da realidade. Unasp-EC, 2012.

ZIMMERMAN, Bonnie. Daughters of Darkness: Lesbian vampires. From Jump Cut, nº 24-25, pp. 23-24, 1981.


157 visualizações6 comentários

6 Comments


Fiquei muito interessado em assistir aos filmes, principalmente Dracula's Daughter. O cinema hollywoodiano tinha potencial para tantas coisas... Se não fosse o Código Moral, poderíamos ter vários outros filmes — assim como esse mencionado — que desafiavam os costumes conservadores, especialmente se olharmos os filmes dos anos 20 e início dos anos 30, antes da censura se iniciar com força total.

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Gaia Jutz
Gaia Jutz
Jul 23
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Obrigada pelo comentário, André, me conta se assistir aos filmes :)

É verdade, muitos filmes pré-censura foram polêmicos e geraram todo um pânico moral, temos que apreciar esse momento do cinema de quem construiu o que depois foi sufocado por propaganda estadunidense. Se tiver indicações, aceito também!

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Como já comentei em texto anterior, sua fluidez é visão de contexto são arrebatadoras, Gaia! Obrigado por outra excelente experiencia.


Quanto à pergunta: Striga e Morana, do anime Castlevania.

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Gaia Jutz
Gaia Jutz
Jul 23
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Fico feliz que tenha gostado, Volnei, muito obrigada pelo comentário!

Ainda não assisti Castlevania, já vou adicionar na minha lista ;)

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Guest
Jul 18

texto incrível!!! brabíssimo, muito embasado e consistente na exposição, parabéns!!

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Guest
Jul 18

Uaaau, não fazia ideia da profundidade da representação lesbica nos filmes de vampiro! Curioso pelas próximas colunas!! ❤️🧛‍♀️

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